Ela e a senhora cega

Era mais outro dia andando. Ela nem mais sabia há quanto tempo estava andando, talvez já tivesse completado um mês ou dois, talvez estivesse andando por um ano ou dois... Por algum motivo não conseguia nem lembrar quando ou porque começou a viajar, sua memória mais antiga é resumida em uma estrada, uma árvore muito verde e um pássaro sentado em um dos galhos da árvore. Mas ela não reclamava, não, gostava de andar assim sem rumo, sem saber o motivo, sem saber o que encontraria, sentindo como o ar é diferente em cada lugar, como as cores são diferentes em cada lugar, como a comida é diferente em cada lugar e, principalmente, como as pessoas são diferentes em cada lugar. Anotava tudo que via num caderninho verde, pequeno, desses sem linhas que cabe perfeitamente em qualquer bolso. Escrevia sobre cada parada, colocava nas folhas do caderninho tudo o que conseguia lembrar e mesmo não tendo a melhor memória do mundo sempre enchia um tanto razoável de páginas. Outro fato curioso é que não conseguia lembrar como aprendeu a ler e escrever, se alguém a tinha ensinado, apenas sabia e isso sempre foi suficiente. Acreditava que talvez tivesse aprendido no mesmo dia em que começou a andar - o que para nós pode parecer um pensamento um tanto quanto absurdo, até mesmo estúpido. “Ninguém aprende a ler e escrever em um dia só” alguns dirão, mas achei que seria melhor não colocar mais pensamentos confusos na mente dela, você também não quer fazer isso agora, quer?
Aos poucos você perceberá que o tempo não é uma figura muito importante na vida dela. Digamos que ela e o tempo caminham em estradas opostas e poucas foram as vezes que essas estradas se cruzaram. Ela não anda com nenhum relógio, também não marca datas importantes em um calendário de bolso, mas, pensando bem, quais datas ela poderia marcar? Não sabe quando faz aniversário, arrisco dizer que ela nem sabe o que seja um aniversário, não comemora o natal e tenho quase certeza que ela também não sabe o que é natal. Os dias vem e vão e isso não faz diferença alguma em sua vida. Não importa se está mais velha ou mais jovem. Talvez tudo o que importe seja conhecer o maior número de lugares e pessoas possíveis ou talvez nada disso importe.
Apesar de não ser a pessoa mais tagarela do mundo ela fez muitos amigos pelo caminho e conheceu pessoas peculiares, com histórias peculiares, em lugares peculiares, como a moça que morava em um ônibus ou a cidade sem homens ou o homem que sabia todas as histórias do mundo. Alguns personagens são mais marcantes que outros. Algumas histórias são mais tristes que as outras. Algumas pessoas são mais felizes que as outras. Ela gosta de pensar que todas são igualmente memoráveis e incríveis.

Eu mesmo gosto de contar algumas dessas histórias e felizmente acabo de me lembrar da senhora cega que passava os dias sentada numa cadeira na entrada de sua cidade dizendo que estava a espera da sua visão. Era impossível passar por lá sem ficar curioso e mesmo que você não a notasse, a senhora se fazia notar e disparava para todo visitante:
- Ela tá vindo de bem longe, é uma visão especial. Eu fiquei pronta antes do tempo e não podia mais esperar, os filhotes não podem passar do ponto, você sabe. Mas a minha visão é diferente das outras e então eu precisei vir antes dela. Estou aqui desde que nasci, esperando ela chegar. Você vai ver como eu vou enxergar diferente de todo mundo! Se você esperar aqui comigo vai ver quando minha visão chegar.
Ela achou que seria um desses momentos únicos na vida, ver uma senhora cega receber sua visão seria como ver um cometa que rasga o céu a cada mil anos, então resolveu esperar. Achou um jeito confortável ao lado da senhora e sentou-se. Ficou imaginando se teria assunto com uma senhora que passou a vida sentada esperando no mesmo lugar, ela mesmo já não era muito de falar, mas a senhora era… E como era.
- Você gosta de música? Eu adoro música. O banjoísta da cidade passa por aqui todo dia e se você esperar ele cruza essa rua daqui a pouco, voltando do seu show, e vai tocar algumas notas, se você quiser ouvir... Eu sei que eu quero ouvir, se você não quiser é bom tampar os ouvidos porque ele toca mesmo que você não queira ouvir. Ele passa por aqui todo dia, você vai ver. Só não vamos ouvir o final da música porque ele nunca para, ele só passa, mas isso é bom, não é? Eu acho que é. Eu nunca ouvi a música inteira porque precisaria levantar e ir até o fim do caminho com ele mas aí minha visão poderia chegar, eu não estaria aqui e ela poderia ir embora, não é mesmo? Mas eu acho bom não ouvir o fim, não gosto quando as coisas acabam, gosto de coisas que não tem fim. Isso, sem fim! Mas quase tudo tem um fim, você não acha? Eu acho. E acho triste quando tudo tem um fim. Então gosto que a música dele não tenha fim porque eu posso esperar e no outro dia ouvir outra vez e no outro dia outra vez e depois outra e outra. Ele já está vindo. Você vai ver, é só esperar.
E ela esperou. Eu esqueci de olhar o meu relógio para saber quanto tempo ela esperou - acho que passo tanto tempo com ela que o tempo já é mais tão presente na minha vida também - e nessa cidade é sempre noite, o que não ajuda na hora de saber as horas. O importante é que ela esperou e quando já estava cansada de tanto esperar começou a ouvir algumas notas vindo de longe, chegando bem devagar, cada vez mais perto. Ela não conhece notas musicais, mas se conhecesse poderia jurar que ouviu um dó maior seguido de um lá sustenido e um ré menor, mas ela não conhecia nada de notas musicais, na verdade não sabia dizer se já tinha escutado algo parecido antes… A senhora falou por tanto tempo sobre músicas que ela não percebeu que sequer sabia o que é uma música! Mas estava muito eufórica para pensar nisso e quanto mais alto ficava o som mais o coração palpitava acelerado. Aquele parecia ser um dos momentos de maior excitação em toda sua vida. O som parecia cada vez mais perto. A essa altura a velha senhora cega já batia os pés no chão, cantarolando algo com um sorriso no canto da boca e batendo palmas de tempos em tempos. Pouco a pouco a figura Banjoísta foi aparecendo no fim da rua, com um banjo na mão e tocando algo que ela não conseguiu decidir se era feliz ou triste mas tinha certeza que era especial, aquilo era a coisa mais especial que já ouvira em toda sua vida, até as estrelas pareciam sorrir e brilhar mais. A senhora batia palmas cada vez mais alegre. Ela, sem perceber, já estava em pé, agitada, contornava a cadeira da senhora, indo e voltando para o seu lugar, o coração parecia que ia sair pela boca, não sabia explicar o que era tudo aquilo, nem o que estava sentindo, mas definitivamente gostava de música.
- Tá vendo, eu te disse. Espera que você vai ver! Olha ele aí, você tá vendo? Eu gosto de música! Ah, como eu gosto de música! - dizia a senhora balançando o corpo na cadeira cada vez mais animada nas palmas.
Por alguns minutos ou segundos - você sabe que a gente não consegue contar o tempo por aqui e mais uma vez eu não lembrei de bater o olho no meu relógio - ela esqueceu tudo a sua volta, sentiu um arrepio no corpo inteiro, uma vontade de pular e dar gargalhadas. Quis sacudir o corpo todo como nunca havia feito. Quis pegar a senhora pelas mãos e fazê-la pular junto. Teve a impressão de que poderia explodir naquele momento e tinha certeza que nunca, em toda sua vida, sentira algo parecido.
E o Banjoísta nada percebeu, estava muito concentrado em sua música mas seu olhar parecia distante, melancólico. Ela olhou e teve a impressão de que ele estava tocando ali na rua mas sua mente estava tocando em algum outro lugar, não sabia como explicar mas sentiu que essa música estava sendo tocada para alguém em outro lugar, mesmo que esse alguém não pudesse ouvir. E assim ele passou. A senhora foi ficando mais calma, o som mais baixo, as estrelas diminuíram o brilho, a noite ficou mais escura. A senhora soltou um longo suspiro.
- Você viu? Eu falei, eu falei que era só esperar que você ia ver! Ah, era só esperar!
Ela queria seguir o Banjoísta, queria continuar ouvindo aquela música até não aguentar mais e seus ouvidos pedirem por silêncio. Ameaçou correr na direção do som.
- Minha visão deve estar para chegar. Estou sentindo que ela já vem. Espera que você vai ver como ela vai ser bonita. Ela é especial. Por isso demorou tanto para ficar pronta. Você vai ver! Eu vim antes, você sabe, eu fiquei pronta antes porque ela é muito especial, sabe? Você vai ver!
Ensaiou correr mas não teve coragem de deixar a senhora sozinha e também estava muito curiosa para ver a visão especial. Sentou outra vez ao lado da senhora, respirou fundo e depois de algum tempo já estava perdida no meio de seus pensamentos. Começou a imaginar como seria uma visão especial: Verde? Com certeza seria verde, tudo de mais especial na sua vida era verde: seu caderninho, suas botas e sua bolsa. Mas verde não deixaria a senhora enxergar nada. Talvez a cor mudasse quando entrasse nos olhos dela. Talvez. Será que é grande? O mundo parece ser especial e parece ser bem grande, pensou. E pensou por mais um tempo até que decidiu e na verdade a visão especial devia ser pequena pois uma vez ouviu um pirata muito orgulhoso gritar:

- EU SOU MUITO ESPECIAL! EU SOU O MENOR DOS PIRATAS DE TODO O MUNDO DOS PIRATAS! CONSIGO ESCAPAR DE QUALQUER GUARDA E NÃO SER PRESO. CONSIGO ENTRAR E SAIR DE QUALQUER NAVIO ANTES QUE O CAPITÃO PERCEBA QUE SEU RUM ACABOU. CONSIGO PASSAR POR QUALQUER PORTA ANTES QUE O MAIS RÁPIDO DOS HOMENS ENCONTRE AS CHAVES. NÃO EXISTE UM PIRATA GRANDALHÃO QUE SEJA MELHOR QUE EU.

Com certeza era uma visão pequena. Isso, verde e pequena como o pirata pequeno.  
A senhora balançava a cabeça como quem concorda com algo e por um segundo ela pensou se a senhora estaria ouvindo seus pensamentos. Não teria como! Teria?
- Você gosta de chuva? Eu adoro quando chove! A água vem tão limpinha na gente. As gotas caem quase fazendo carinho na gente, você não acha? As vezes eu tenho  impressão que se prestarmos atenção da até para ver elas brincando enquanto caem: “eu vou chover mais rápido que você dessa vez, você vai ver!”. Tolinhas essas gotas! - e deu uma risadinha de canto de boca. Eu acho que vai chover hoje. Espera que você vai ver!
Chuva ela sabia que conhecia e não tinha certeza se gostava. A chuva algumas vezes é um pouco cruel com quem passa a vida andando sem rumo e o único plástico que carregava na bolsa usava para proteger o caderninho, então já tomara muitos banhos de chuva não planejados e muito menos desejados.
- Dizem que é bom para limpar a alma, não é isso que dizem? Eu acho que é isso que dizem. A chuva vem bem pura e limpa a alma da gente, leva tudo de ruim embora. Você não acha? Eu acho. Se você não gosta de chuva é bom colocar uma folha de bananeira na cabeça. Ela tá chegando. Espera que você vai ver!
Ela olhou para cima e não achou que alguma chuva daria as caras por ali tão cedo. Na verdade o clima parecia bem agradável. Nem muito quente e nem tão frio. Nem com muito vento e nem sem vento algum. De repente um estrondo forte ecoou nos céus, como se alguém tivesse escancarado um imenso portão de metal. Ela olhou para os lados preocupada, tentando entender o que estava acontecendo, foi quando começou a ouvir risadinhas por todos os lados. Risadinhas de vozes finas. Então a primeira gota de chuva passou na frente do seu nariz gritando:
- EU GANHEI! EU GANHEI! EU GANHEI! DESSA VEZ EU CHEGUEI PRIMEIRO AQUI EMBAIXO!
E explodiu no chão. Ela não teve nem tempo de processar o que acabara de acontecer, segundos depois - e aqui eu sei que foram segundos porque foi tudo muito rápido, então não deu tempo de ser mais que alguns segundos - milhares de vozes soltavam gritos de alegria e euforia. Mais uma vez a senhora gargalhava dizendo:
- Eu não te disse? Era só esperar para você ver! Essas danadinhas sempre voltam. Você tá vendo?
Ela ficou tão encantada com a brincadeira das gotinhas que sem nem perceber estava pulando em volta da senhora outra vez, dando pulos de alegria com as gotinhas. Dessa vez não se preocupou com o frio ou sapato molhado, na verdade essa chuva não estava gelada e nem desagradável. Não estava com frio, estava parecendo mais um banho de chuveiro quente.
- Elas não caem gelada aqui perto da minha cadeira. Você tá vendo? Elas sabem que eu fico resfriada se tomo banho de chuva gelado e aí posso espirrar na minha visão quando ela chegar e assim mandá-la para bem longe, não é mesmo? Você tá vendo como elas se preocupam comigo?
Ela não achava que aquilo fazia muito sentido mas ficou feliz pela senhora não correr risco de ficar doente. E voltou a pular. Pensou que o Banjoísta deveria estar ali tocando para a chuva, seria um casamento ideal: o Banjoísta e a chuva que não era fria. As gotinhas estavam cada vez mais rápidas, mais risonhas e por isso mais barulhentas e graças aos gritos animados ela percebeu que o barulho que escutamos quando chove na verdade são as gotas brincando de chover, ouvimos suas risadas o tempo todo mas nunca ouvimos com ouvidos que querem ouvir e por isso sempre achamos que é só a água batendo no chão e nos telhados. Era a segunda vez naquele dia que a senhora fazia com que ela enxergasse algo novo. Não sabe quanto tempo - e nem nunca saberá, nem ela, nem eu e nem você, desculpa - demorou pensando tudo aquilo porque quando voltou a prestar atenção na chuva, a última gota vinha correndo e gritando:
- ME ESPEREM! VOCÊS SEMPRE FAZEM ISSO COMIGO! EU QUERO BRINCAR TAMBÉM!
Quando ela acertou a cadeira da senhora e caiu no chão, a noite voltou a ficar silenciosa, o céu ficou limpo, algumas estrelas mais curiosas vieram brilhar para ver como estava tudo aqui por baixo. Outro suspiro longo da senhora:
- Ahhhhh… Você viu, né? Como elas brincam o tempo todo, são muito faceiras. Elas nunca crescem, sempre morrem novinhas assim e quando voltam lá para cima já esqueceram que elas morrem quando acertam o chão e aí vão pular mais uma vez e depois terão que esperar para poder cair mais outra vez. Você viu que tolinhas?
Naquele instante ela sentiu que seus olhos poderiam saltar para suas mãos. Aquele tempo todo estava feliz enquanto todas as gotas morriam. Talvez sua expressão tenha sido tão clara que até a senhora cega percebeu e tratou de acalmar a situação:
- Mas você não se preocupe, viu? Amanhã mesmo elas já acordam nas nuvens prontas para brincar de cair outra vez. Você vai ver! A vida delas é assim: nascer para morrer ou morrer para nascer e elas são felizes assim, você viu?
Não sei dizer se ela acreditou muito nisso - nem sempre eu consigo dizer o que ela está sentindo - mas não tinha muito o que fazer agora, e nem antes, ela não teria como parar a chuva e impedir que elas caíssem, a senhora disse que essa é a vida delas e quem é ela para se intrometer na vida dos outros. Achou melhor sentar outra vez ao lado da senhora, só precisava secar seu corpo... E foi aí que percebeu que já estava seca. Não era possível que ela tivesse ficado tanto tempo assim refletindo sobre a vida das gotas mas o tempo era o morador mais misterioso da cidade e ela não queria mais tentar entender algumas coisas por ali.
Não demorou muito e  ela caiu no sono. E sonhou. Sonhou com o Banjoísta e a chuva e também com a senhora e sua visão verde e pequena. No sonho as estrelas brilhavam junto da lua iluminando o céu de tal maneira que parecia dia e as gotas  pulavam espalhadas pelo chão mas sem morrer, formavam um tapete vivo de gotas de chuva. E a visão chegava junto com o Banjoísta, que dessa vez sorria, e iam ao encontro da senhora, que finalmente levantava da cadeira.
- Eu disse que ela estava chegando. Você viu? Ela não é linda? Pequena e verde. Você ta vendo? Agora eu estou vendo também. Eu to vendo tudo. Eu to vendo até você.
E todos pularam e cantaram muito. Pelo menos até ela acordar e perceber que tudo não passou de um sonho. A velha ainda estava cega, o Banjoísta devia estar melancólico por algum canto da cidade e as gotas não estavam no chão. Pelo menos a lua e as estrelas sorriam, brilhando como no sonho. Ela ficou deitada olhando a movimentação no céu e pensando em como devia ser cansativo para a lua e as estrelas viverem nessa cidade, sendo noite o tempo todo elas nunca dormiam. E era incrível como mesmo assim não perdiam o brilho forte.
- Estou sentindo que ela está chegando! Você ta vendo alguma coisa? - disse a senhora cortando bruscamente sua reflexão sobre o céu noturno da cidade.
Se pôs de pé e a observar todos os lados das ruas. Não viu nada e acenou com a cabeça para a senhora e sentiu-se a criatura mais estúpida do universo, obviamente a senhora não percebeu o aceno com a cabeça...
- Olha direito porque ela tá vindo! Você vai ver! - respondeu a senhora que mais uma vez parecia ler a sua mente.
Não sabia explicar como ou porque mas sentiu algo mudando no ar. Tudo aconteceu muito rápido até mesmo para uma cidade com o tempo tão confuso. Uma brisa leve e fresca cortou as ruas levantando uma nuvenzinha de poeira do chão. As árvores ficaram agitadas. Algumas folhas voaram um pouco mais alto que de costume. Os balanços do parquinho puseram-se a balançar sozinhos. Os cachorros da vizinhança uivaram. Os gatos se juntaram em pequenos bandos nas esquinas. O sino de alguma capela começou a badalar. Um grupo de corujas se juntou nos fios dos postes. Ela estava tão confusa com todo esse cenário sendo montado tão rápido que não percebeu que a senhora estava de pé no meio da rua com lágrimas lavando seu rosto.
- Eu disse que ela estava chegando! Você ta vendo já?
E antes que ela pudesse responder a senhora, avistou, no fim da rua, uma silhueta pequena correndo em direção a senhora. Tudo estava acontecendo tão depressa que ela ficou presa no lugar olhando a senhora e a silhueta, sem conseguir falar nada, apenas respirando ofegante. Ao se aproximar da senhora a silhueta ganhou uma forma definida, era uma criança. Uma criança de pouco mais de 5 anos, com uma camiseta verde e um sorriso muito calmo. A criança olhou para a senhora, sorriu mais uma vez e disse:
- Eu cheguei. Você viu? Eu sabia que você estava aqui me esperando. Eu demorei muito. Você viu? Mas agora estamos juntos e eu vou poder enxergar por você, vou ser seus olhos por todos os lugares. Vamos poder ver o céu azul e o mar. Vamos ver os pássaros migrando e morcegos saindo para trabalhar a noite. Vamos ver as crianças que aprontam traquinagens e depois correm das mães. Vamos ver o encontro do dia com a noite. Você quer ver comigo? Eu vou ser os seus olhos. Vou enxergar tudo para você. Vou te mostrar como o mundo é grande. Você quer ver comigo?
A senhora chorava com um sorriso quase mágico no rosto.
- Eu sabia que você vinha, meu menino. Eu te esperei. Você viu? Agora eu vou enxergar tudo. Eu tenho uma vida para enxergar ainda. - e virando-se para ela disse - Você tá vendo? Ela chegou. Você viu? Agora eu vou enxergar. Agora vou poder ver o mundo todo. Mas agora eu preciso ir porque a vida não espera para ser vivida, não é isso que dizem?
Ela continuou presa ao chão - não presa de verdade, é claro, mas sentindo como se estivesse - enquanto via a senhora acenando e indo embora de mão dada com a criança. Com certeza fora um desses momentos únicos na vida e ela estava muito feliz por ter visto alguém receber sua visão. E enquanto a senhora ia embora, ela notou que o céu ficava cada vez mais claro. Ela olhou pra cima e percebeu que a lua e as estrelas estavam indo embora e o sol e as nuvens estavam chegando. Todo esse tempo a lua e suas filhas estiveram lá esperando com a senhora cega e agora já podiam ir brilhar em outros céus.
Não sei dizer quanto tempo ela ainda continuou parada pensando em tudo o que tinha visto ao lado da senhora cega. Ela estava muito feliz pela senhora e muito feliz por ter decidido ficar esperando por alí mas agora era hora de partir. Para onde? Bom, ela também não sabia. Mas ela sabia que era só esperar que uma hora o destino traça uma nova rota. Você vai ver. É só esperar.

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